Sobre fugir do passado

Mayara Lua
6 min readMay 23, 2020

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e sobre fazer as pazes com ele

Dizem que a mente humana idealiza o passado, mas a minha faz o oposto tem tempo. Ela pensa no passado como uma época horrível e escura onde eu não tinha liberdade sobre mim. Uma época que ela não tem vontade de revisitar mas ao mesmo tempo não é capaz de superar. Uma época de estresse, desgosto e - porra - uma época de muita instabilidade emocional. Uma época de erros, muitos erros, e principalmente de muitas dores. Um tempo sem poder de narrativa, e isso dói mais do que muita gente se dá conta. Um tempo que me quebrou, me machucou e me deixou sequelada de uma maneira que eu não sei consertar.

Ao mesmo tempo ela sente saudade, como eu posso explicar… eu sinto saudade de me sentir menos oca. Não é que me sinta completamente oca, mas sinto como se tivesse alguma coisa faltando - alguma coisa muito fundamental. Eu não sinto falta de ir pra escola sem dormir, nem de chorar em público, nem de cortar os pulsos, nem de fazer plano suicida. Eu não sinto falta das coisas que eu passava em casa, nem um pouquinho. Ainda assim, eu sinto muita falta daquela coisa sem nome que define quem nós somos. Sinto como se parte dela tivesse se esvaído. Como se eu fosse uma xícara que foi arremessada no chão com muita força e no que foi arremessada não só quebrou mas derramou tudo o que tinha nela. Eu sinto falta do conteúdo dessa xícara - todo dia. Como a vítima de um acidente que foi metade fatal, porque não matou ninguém mas só deixou uma fração de mim.

Mas minha psicóloga, que aliás foi quem veio com a metáfora da xícara, me pediu para que eu pensasse durante essa semana sobre o que podemos fazer com a Mayara xícara quebrada e lembrei de alguns anos atrás, quando um amigo muito querido me contou sobre uma técnica japonesa de cerâmica chamada Kintsugi. Calma, eu sei que parece que fui longe demais com a metáfora, mas tem uma filosofia maravilhosa por trás dessa técnica.

Kintsugi (金継ぎ ) significa “ligação de ouro” e consiste basicamente em remendar peças com uma mistura de laca e ouro. A mitologia da sua invenção conta que no século XV o Xogum (um tipo de líder japonês) Ashikaga Yoshimasa enviou um recipiente de chá à China para que ele fosse consertado. Era de lá que os Xoguns importavam peças raras e valiosas para que fossem usadas na Cerimônia do Chá.

A peça foi reparada com grampos de metal tão discretos quanto possível mas eles não foram capazes de esconder o estrago nem de devolver a ela sua beleza original. O Xogum não gostou do resultado e a enviou a artesãos japoneses. Dessa vez, ao invés de tentar esconder o que não dava mais para esconder, os artesãos decidiram que era hora de respeitar o passado da xícara e assim fizeram suas emendas em ouro. Eles não só não tentaram esconder, mas também escolheram ressaltar suas imperfeições.

Esse mito vem do século XV porque esse século foi o berço da filosofia Wabi-Sabi: de que as coisas são mais bonitas quando se respeita suas marcas de idade e uso. Ela abraça a noção de que a sabedoria vem de fazer as pazes com o transitório, imperfeito e não heroico.

Meu amigo me explicou o que era Kintsugi no começo de 2018, do jeitinho muito especial dele, em uma conversa pelo twitter. Eu estava lembrando disso quando esbarrei com uma fala da Gabriela Prioli, printada na minha galeria. Foi a resposta sobre o melhor conselho que ela já recebeu:

“Se aproprie da sua história, de quem você é, é aí que está a sua força. Não apenas do que é bom, mas do seu ser como um todo. É assim que você se torna menos suscetível ao questionamento dos outros. É também o conselho que eu dou para todo mundo.”

Estava pensando sobre todas essas coisas (a princípio de forma bem menos elaborada) porque foi o exercício que minha psicóloga propôs. Ela também tinha pedido para que eu pensasse sobre minha trajetória e as mudanças pelas quais passei e foi por isso que eu decidi me aborrecer vasculhando um drive de adolescência. Ou pelo menos achei que fosse me aborrecer, muito, já que geralmente vejo minha adolescência como um período muito horrível e traumático e esse drive era de dois mil e dezesseis (eu tento evitar esse ano mas minha cabeça curte reprisar as piores partes de madrugada).

Me aborreci mesmo - nos primeiros … dois minutos? E aí comecei a achar foto de uns lugares muito bonitos de Brasília - e nem estou falando dos pontos turísticos, mas das tardes inspiradas que passei na Asa Norte. Comecei a achar foto de gente muito legal que eu fico muito feliz pelo privilégio de ter conhecido, de projetos dos quais eu participei, de coisas que eu conquistei, tudo isso mesmo em uma época tão conturbada. Quando dei por mim, estava no whatsapp de uma amiga rindo e mandando vídeo para ela da gente passando vergonha no Snapchat.

Aliás, eu percebi que para cada coisa sobre a qual eu realmente me envergonho (e tem bastante, não vou mentir) existe pelo menos uma da qual eu tenho orgulho. Tipo ganhar menção honrosa em mun, ganhar menção honrosa na obmep, participar de projetos sociais, aquele laudo de Altas Habilidades do qual eu não conto pra quase ninguém... Pela primeira vez em muito tempo, eu senti mais compaixão do que raiva dos meus erros antigos.

Foi ligando todos esse pontinhos que percebi o porquê de estar me sentindo tão perdida ultimamente. Meu passado é parte de quem eu sou e venho tentando jogar ele fora. É como aquela folha no final do meu caderno, onde fiz um desenho e adorei mas aí fui desenhar no verso e não gostei do resultado - não dá pra jogar fora só o lado do qual eu gostei. Só que, muito mais importante do que uma folha de caderno, meu passado é o tecido da minha vida - inclusive as falhas, as dores, as partes ruins, os machucados, as coisas sobre as quais eu não consigo falar e os milhares de erros que eu cometi.

Tudo bem que às vezes esse parece um motivo a mais para querer jogar tudo fora, porque tem dias em que eu queria muito não ser eu. Tipo, muito mesmo. Às vezes eu só queria poder me começar do zero, sem as dores, sem os traumas, sem as atitudes ridículas, sem a dificuldade de concentração, sem evitar relacionamentos, sem queimar o arroz, sem derrubar tudo só de entrar no ambiente. Às vezes, e eu me sinto bem mal em dizer isso, eu só queria uma versão de mim que tenha mais vontade de fazer medicina do que teatro.

Mas não funciona. Eu não sinto que fugir de mim esteja me substituindo por uma “eu” melhor. Só torna tudo mais difícil, me faz sentir vazia e com saudade de mim. Por isso eu gostei tanto da metáfora da xícara. Não me sentia só quebrada, mas quebrada e destituída de alguma coisa. Só que talvez a essência da xícara seja o próprio fato de ser xícara.

Foi só escrevendo isso aqui que eu percebi a diferença entre seguir em frente e fugir. O passado às vezes dói demais e dá muita vontade de jogar uma pá de cal nele e nunca mais olhar para trás. Só que não tem como. Quer dizer, até tem, mas não é o caminho para seguir em frente e sim para uma versão pior de quem poderíamos ser - uma versão pior da gente. Talvez esse texto seja muito pessoal pra alguém se identificar, mas escrevê-lo foi muito importante pra mim. Me fez ver tudo de uma maneira diferente (e chorar um pouquinho rs). Por isso eu quis compartilhar aqui, talvez seja parte dessa coisa toda de fazer as pazes com o passado e ao mesmo tempo de torcer pra mensagem dele conversar com mais alguém.

Essa foto aí é daquele drive. Sabe o porta lápis aí atrás? É uma caneca de cerâmica que eu quebrei e colei com superbonder. Eu tinha uma ideia muito daora de escrever Coffe Break com cola colorida (eu comprei o violino, caso você se pergunte - e meu irmão quebrou porque nem sempre as coisas saem como a gente gostaria).

“Nossa cultura acha muito importante que você entenda o histórico espiritual ou a história por trás da pessoa ou do material. Esse é o projeto do Kintsugi.”

- Teruo Kurosaki

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Mayara Lua

Eu me contradigo? Muito bem, então, eu me contradigo; eu sou vasto - eu contenho multitudes." (Walt Whitman) (insta:mayart.b)