Amanhecer

Mayara Lua
6 min readApr 2, 2021

--

“Hugging the shadows” por Emiliano Ponzi

Quatro anos atrás, quando meu noivo morreu, achei que nunca mais seria capaz de parar de chorar. Noivo. Queria muito poder dizer que ele era meu marido. Eu sempre dizia que não queria casar antes de terminar a faculdade, antes disso, antes daquilo… acho que no fundo eu só não tinha certeza. Sempre imaginava que fosse terminar em um divórcio horrível, em uma guerra na justiça e na gente se odiando para sempre. Não sou boa em esboçar roteiros felizes. Agora me sinto mal por manter um pé atrás até com a pessoa que mais amei na vida e daria qualquer coisa só para ter a oportunidade de ver “dando errado”. Num dia a gente acha que tem todo o tempo do mundo, e no dia seguinte não tem tempo nenhum.

Na última véspera de natal, queimei o peru ao esquecê-lo no forno. Nathan estava na casa da irmã dele e eu liguei super nervosa dizendo para ele correr no mercado e tentar comprar alguma coisa. Gastei a meia hora seguinte com raiva de mim mesma por ser tão desligada enquanto tentava limpar o cheiro de queimado da cozinha e tentava salvar alguma coisa do peru, sei lá, para fazer algo que envolvesse peru desfiado…Nathan não respondia nenhuma mensagem minha então decidi ligar para saber o que estava acontecendo.

Não é incrível o quanto tragédias são repentinas? Uma moça com voz de passarinho atendeu o celular e naquele minuto meu mundo caiu para sempre. Ele saiu na chuva e se envolveu em um acidente com um caminhão. A moça me disse que ele acabara de morrer. Eu não lembro de nada das horas seguintes, mas o ano seguinte foi o pior da minha vida.
Um braço quebrado, uma hemorragia interna e uma contusão pulmonar. Não foram só quatro anos sem ele, mas quatro anos sabendo que ele morreu por minha culpa. Eu consegui matar o ser humano que mais amei.

Juro que Nathan foi a pessoa mais legal que já conheci. E também a mais doce. Meio fora de órbita por estar sempre com a cabeça no trabalho: era biólogo, especialista em pinguins. Ele queria que a gente passasse nossa lua de mel em Galápagos e começou a falar sobre os pinguins da região. Na época eu fiquei com raiva.

— Porra, Nathan, você só pode estar brincando! Você quer brincar de Charles Darwin na nossa lua de mel?

Meu deus eu me odeio. Eu não consigo entender por que fiz isso, por que falar assim com alguém de quem eu gosto, que não fez nada de errado e que nunca falaria comigo desse jeito. Eu sou uma pessoa horrível. Alguém que queria que eu fizesse parte de algo importante para ele. Meu deus, eu me odeio!

A gente decidiu, ou sei lá, eu decidi, que nossa lua de mel seria na França. De qualquer jeito, eu estava sempre enrolando com o casamento. Juro que eu queria, mas não sou boa em acreditar que as pessoas me amam ou que as coisas possam dar certo. E aí elas realmente não dão. Acho que eu nasci para estragar tudo.

Depois de seis meses eu voltei a namorar. Depois do acidente, fui me isolando de todo mundo ao meu redor. Geralmente não tinha energia para conversar, para sair com meus amigos… foi quando conheci Amaro em um bar qualquer. Eu era boa para ele de um jeito que nunca fui capaz de ser para Nathan, mas nunca era o suficiente. Não percebia, ou não queria aceitar, como estar com ele só me deixava pior e pior. Não sei como posso ser tão burra, mas passei três anos, aliás, três anos e quatro meses com ele. Acho que minha cabeça veio quebrada.

Fui morar com ele depois de pouco tempo. Ele era horrível, quase sempre, mas nunca havia me machucado. Então um dia ele me bateu. Bateu tanto que eu realmente achei que fosse morrer. Nunca senti tanto medo, mas esse foi o dia em que acordei para sair dali. Quando voltou, Amaro não encontrou ninguém.

Agora tenho uma ordem de restrição e moro no sofá-cama da minha mãe. Mas sempre dá para piorar, né? Recebi minha demissão semana passada. É claro que é horrível ter mais um atestado da minha incompetência mas, nesse ponto, até senti um certo alívio. Meu trabalho pagava bem, mas eu odiava, e não tem nada mais desgastante do que passar seus dias se deslocando entre dois lugares que fazem mal. Meu deus, não sei por que faço isso comigo mesma.

De qualquer forma, pelo menos eu tenho seis meses de seguro desemprego. E meu dinheiro aumentou nos últimos meses, agora que não tenho que sustentar os caprichos de Amaro. Decidi que vou passar meu final de ano em Galápagos. Preciso de folga da minha vida e não aguento mais me sentir um parasita na casa da minha mãe (embora ainda esteja cansada e assustada demais para morar sozinha) que acha que eu surtei, mas acabou apoiando — acho que ela prefere qualquer coisa do que continuar me vendo assim.

Sabia que em Galápagos existe uma lei que proíbe barcos de turistas com mais de 100 pessoas? É um esforço de preservação. Dá para ver que funciona, porque do momento em que pisei aqui eu soube que nenhum lugar é como esse. É tanta… vida. Vida correndo por todos os lugares. Vida se espalhando. Vida nos habitantes. Vida na própria terra. Queria muito que Nathan tivesse visto isso pessoalmente.

O que mais gostei foram os pinguins. Dá para nadar muito perto deles. Têm uns 55 centímetros e são acinzentados com a barriga branca. Uma semana depois de chegar, encontrei um pinguinzinho com a asa sangrando e chamei um guia de preservação. Ele precisou ficar duas semanas no Centro Permanente de Preservação e eu fui lá todos os dias.

Nunca achei que um pinguim pudesse parecer deslocado, mas ele parece. Ou eu fiquei louca. Mas faz uma semana que ele voltou para a natureza e eu ainda consigo reconhecê-lo no meio dos outros só de olhar. Comecei a chamá-lo de Simbad. Não sei, combina com ele.

A existência desse pinguim se parece com um milagre. Ele se apegou a mim e vem me cumprimentar sempre que eu apareço perto do rochedo onde ele gosta ficar. Ontem me trouxe um peixe, do jeito que minha gatinha fazia quando pegava um rato no tempo em que eu era menina. Se outra pessoa me contasse, eu acharia que é mentira. Um dia, comecei a chorar e ele passou duas horas comigo esperando que eu ficasse bem ou estivesse pronta para levantar. De alguma maneira, ele me lembra de alguém que eu conheci. E por alguma razão ele me faz acreditar.

Passei a véspera de natal com amigos que fiz aqui. Havia algum tempo que não fazia amigos e quatro anos que eu não tinha um natal feliz. Mas hoje é natal e estou feliz. Em uma praia de Galápagos, com um pinguim, tentando entender como foi que me perdi tanto…

Acho que o Nathan sempre vai ser parte de mim. Tudo o que ele fez, tudo o que ele mudou, tudo o que ele foi. Infelizmente, os erros que eu cometi com ele sempre vão ser parte de mim também, mas se ele conseguia me ver para além desses erros então eu também vou descobrir como. Em respeito a ele.

Não sei se existe vida após a morte, mas sei que enquanto eu viver haverá algo dele em mim e eu sempre serei grata por isso. Enquanto eu pensava nisso, Simbad emitiu um som e eu tive a peculiar sensação de que a dor não seria para sempre.

(Escrevi esse conto para uma brincadeira de amigo secreto literário de natal do grupo de escritores do qual faço parte. Não pretendia divulgar mas gostei muito da reação da pessoa que recebeu, então decidi postar aqui (demorei porque sou procastinadorah) — Pedidos de tema do meu amigo secreto: Algo colossal que não deveria ser, pinguim, foco em personagens, sem religião)

Desconheço o fotógrafo :/

--

--

Mayara Lua

Eu me contradigo? Muito bem, então, eu me contradigo; eu sou vasto - eu contenho multitudes." (Walt Whitman) (insta:mayart.b)